Porque eu estou me afastando da “Medicina” Preventiva

Autora: Barbara Ehrenreich

Nos últimos anos, desisti de muitas abordagens médicas – rastreamento de câncer, exames anuais, exames de Papanicolau, por exemplo – esperados de uma pessoa responsável e que tem plano de saúde. Isto não foi baseado em nenhum impulso suicida. Nem sei se posso chamar de decisão, foi mais como um acúmulo de microdecisões: ficar na minha mesa de trabalho e conseguir cumprir um prazo ou comparecer ao consultório do clínico e me submeter ao mais moderno teste para avaliar minha sustentabilidade biológica; passar a tarde no ambiente artificial com aquela decoração falso-acolhedora de um consultório médico ou dar um passeio. No começo, eu me culpava e me achava preguiçosa e procrastinadora, afinal de contas estava deixando de lado coisas simples e óbvias que poderiam prolongar minha vida. Afinal, essa é a grande promessa da medicina científica moderna: você não precisa ficar doente e morrer (pelo menos por enquanto), porque os problemas podem ser detectados “cedo” quando são prontamente tratáveis. É melhor pegar um tumor quando é do tamanho de uma azeitona do que de um melão.

Eu sabia que estava indo contra o meu próprio e muito antigo viés que favorece cuidados médicos preventivos, ao invés de intervenções curativas de alta tecnologia caras e invasivas. O que poderia ser mais ridículo do que um hospital do centro da cidade que oferece uma câmara hiperbárica, mas não oferece um serviço para detectar o envenenamento por chumbo na comunidade? Do ponto de vista da saúde pública, assim como do ponto de vista pessoal, faz muito mais sentido rastrear problemas evitáveis ​​do que investir recursos enormes no tratamento de pessoas muito doentes.

Eu entendi ainda que eu estava indo no sentido oposto da multidão para meu grupo demográfico em particular. A maioria dos meus amigos formados de classe média começou a dobrar seus esforços relacionados à saúde no início da meia-idade, se não antes. Eles treinam em academias ou praticam ioga; eles preenchem seus calendários com os próximos exames médicos e testes; eles se gabavam de suas contagens de colesterol “boas” e “ruins”, seus batimentos cardíacos e pressão arterial. A maioria compreendia que a tarefa de envelhecer era a autonegação, especialmente no campo da dieta, onde um modismo médico, um estudo ou outro, condenava a gordura e a carne, carboidratos, glúten, laticínios ou todos os produtos derivados de animais. Na cabeça dos que “cuidam da própria saúde” que tem prevalecido entre as pessoas ricas do mundo há cerca de quatro décadas, a saúde é indistinguível da virtude, alimentos saborosos são “pecaminosamente deliciosos”, enquanto alimentos saudáveis ​​podem ter sabor suficiente para serem anunciados como “pode comer sem culpa”. E aqueles que caem em tentação, pra compensar o lapso realizam medidas punitivas como jejuns, expurgos ou dietas compostas de diferentes sucos cuidadosamente sequenciados ao longo do dia.

Eu tive uma reação diferente ao envelhecimento: gradualmente percebi que tinha idade suficiente para morrer, e não estou sugerindo que cada um de nós tenha uma data de validade. Obviamente, não existe uma idade fixa em que uma pessoa deixe de merecer mais investimento médico, seja na prevenção ou na cura. Os militares julgam que uma pessoa tem idade suficiente para morrer – para se colocar na linha de fogo – aos 18 anos. No outro extremo da vida, muitos continuam líderes mundiais em seus setenta anos ou até mais, sem ninguém questionar sua necessidade. para testes contínuos e cuidados. O presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, completou recentemente 90 anos e passou por vários tratamentos para o câncer de próstata.

Se julgarmos pelos obituários dos jornais, no entanto, notamos que há uma idade em que a morte não requer mais muita explicação. Embora não haja uma regra editorial geral sobre esses assuntos, geralmente é suficiente quando o falecido está na faixa dos setenta anos ou mais para o escritor do obituário invocar “causas naturais”. É triste quando alguém morre, mas ninguém pode considerar a morte de um septuagenário “trágico”, e não haverá demanda por uma investigação.

Quando percebi que tinha idade suficiente para morrer, decidi que também tinha idade suficiente para não suportar mais sofrimento, aborrecimento ou tédio na busca de uma vida mais longa. Eu como bem, o que significa que escolho alimentos com sabor bom e que evitam a fome pelo maior tempo possível, como proteínas, fibras e gorduras. Eu me exercito – não porque me faça viver mais, mas porque me sinto bem quando o faço. Quanto aos cuidados médicos: procurarei ajuda para um problema urgente, mas não estou mais interessada em procurar problemas que permanecem indetectáveis ​​para mim. Idealmente, a determinação de quando alguém tem idade suficiente para morrer deve ser uma decisão pessoal, baseada no julgamento dos benefícios prováveis, se houver, dos cuidados médicos e – tão importante em uma certa idade – como escolhemos passar o tempo que nos resta.

Ao mesmo tempo, sempre questionei quaisquer procedimentos recomendados pelos profissionais de saúde; na verdade, faço parte de uma geração de mulheres que insistiram em seu direito de fazer perguntas sem ter a palavra “não cooperativa” – ou pior – escrita em seus registros médicos. Então, quando alguns anos atrás meu médico de cuidados primários me disse que eu precisava de um escaneamento de densidade óssea, eu perguntei a ele o porquê: o que poderia ser feito se o resultado fosse positivo e se descobrisse que meus ossos estavam escavados pela idade? Felizmente, ele respondeu, agora havia uma droga para isso. Eu disse a ele que estava ciente da droga, tanto de seus anúncios de página inteira de revista quanto de artigos na mídia questionando sua segurança e eficácia. Pense na alternativa, ele disse, que pode ser, digamos, uma fratura de quadril, seguida por uma rápida descida até a necessidade de morar em um asilo.

Sendo assim, admiti a contragosto que a realização do teste, que não é invasivo e é coberto pelo meu plano de saúde, poderia ser preferível à imobilidade e à institucionalização. O resultado foi um diagnóstico de “osteopenia”, ou afinamento dos ossos, uma condição que poderia ser alarmante se eu não tivesse descoberto que ela é compartilhada por quase todas as mulheres com idade acima de 35 anos. Osteopenia é, em outras palavras, não uma doença, mas uma característica normal do envelhecimento. Um pouco mais de pesquisa, tudo em fontes prontamente disponíveis, revelou que a varredura óssea de rotina tinha sido fortemente promovida e até subsidiada pelo fabricante do medicamento. Pior, a medicação preferida no momento do meu diagnóstico acabou por causar alguns dos problemas que deveria prevenir – degeneração óssea e fraturas. Um cínico pode concluir que a medicina preventiva existe para transformar as pessoas em matéria-prima para um complexo médico-industrial sedento de lucro.

Minha primeira grande deserção do regime de rastreamento exigido foi precipitada por uma mamografia. Ninguém gosta de mamografia, a qual equivale a um esforço de força bruta para tornar os seios transparentes. Primeiro, um seio é achatado entre duas placas, então é bombardeado com radiação ionizante, que é, incidentalmente, o único fator ambiental reconhecidamente causador de câncer de mama. Eu tinha sido bastante obediente sobre mamografia desde que tinha sido tratada para o câncer de mama na virada do milênio, e agora, cerca de 10 anos depois, o consultório do ginecologista relatou que eu tinha uma “mamografia ruim”. Passei as semanas seguintes altamente ansiosa e passando por mais testes, no meio das quais eu consegui ganhar uma multa por “direção irregular”. Naturalmente eu estava distraída – pela decisão iminente de passar por tratamentos de câncer debilitantes novamente, ou simplesmente deixar a doença seguir seu curso dessa vez.

No final das contas descobri, depois de passar por um ultrassom e ter lutado contra o pânico em um tubo de ressonância magnética semelhante a um caixão, que a “mamografia ruim” era um falso positivo resultante das novas formas digitais altamente sensíveis de geração de imagens. Essa foi a minha última mamografia. Para que isso não pareça uma decisão imprudente, fui apoiada por um oncologista da Cidade Grande, que viu todas as minhas imagens médicas e disse que não haveria necessidade de me ver mais, o que eu interpretei como“nunca mais.

Depois disso, todo encontro médico ou dentário parecia terminar em uma briga. Os dentistas – e eu encontrei vários deles em minhas viagens pelo país – sempre quiseram um novo conjunto de raios X, mesmo que o único problema fosse uma pontinha de dente quebrado. Tudo o que eu conseguia pensar era nas máquinas de raio-X que toda loja de sapatos havia oferecido na minha juventude, através das quais as crianças eram encorajadas a espreitar os ossos dos pés enquanto balançavam os dedos dos pés. A diversão terminou na década de 1970, quando esses “fluoroscópios” foram banidos como fontes perigosas de radiação. Então, por que eu deveria rotineiramente expor minha boca, que é muito mais propensa a câncer do que os pés, a altas doses anuais de roentgens? Se havia algum motivo para suspeitar de problemas estruturais subjacentes, tudo bem, mas apenas para satisfazer a curiosidade do dentista ou alcançar algum “padrão de tratamento” abstrato – não.

Em todos esses encontros, fiquei impressionado com a maneira como os profissionais simplesmente ignoravam meu relato pessoal e subjetivo – em geral, algo como “me sinto bem” – mas valorizavam os resultados das descobertas ocultas de seus equipamentos. Um certo médico, mesmo sem que eu reclamasse de quaisquer sinais ou sintomas óbvios, decidiu medir minha capacidade pulmonar com o novo instrumento portátil que ele havia adquirido para essa finalidade. Eu respirei, conforme as instruções, o mais forte que pude, mas minha respiração não registrou em sua tela. Ele mexeu no instrumento, parecendo profundamente preocupado, e me disse que eu parecia estar sofrendo de uma obstrução pulmonar. Em minha defesa, argumentei que faço pelo menos 30 minutos de exercícios aeróbicos por dia, sem contar a caminhada comum, mas fui educado demais para demonstrar que ainda era capaz discutir oralmente de forma intensa.

Foi o meu dentista, por incrível que pareça, que sugeriu, durante um obturação comum, que eu fosse testada para a apneia do sono. Como um dentista se envolveu no que normalmente é o domínio de especialistas em ouvido, nariz e garganta, eu não sei, mas ela recomendou que a triagem fosse feita em um “centro do sono”, onde eu tentaria dormir enquanto dispositivos de monitoramento. Depois dos teste eu poderia comprar o tratamento dela: uma horrível máscara em forma de caveira que supostamente impediria a apneia do sono e definitivamente extinguiria qualquer última possibilidade de atividade sexual. Mas quando eu protestei que não há evidências de que eu sofra desse distúrbio – nenhum sintoma ou sinal detectável – o dentista disse que eu poderia não estar ciente disso, acrescentando que isso poderia me matar em meu sono. “Olha, ‘morrer durante o sono’é uma perspectiva com a qual posso viver”, eu disse à ela.

Assim que cheguei aos 50 anos de idade, os médicos começaram a recomendar – e em um caso até imploraram – que eu fizesse uma colonoscopia. Como no caso das mamografias, a pressão para se submeter a uma colonoscopia é difícil de evitar. Celebridades as promovem, quadrinhos zombam deles. Durante o mês de março, mês da Consciência do Câncer Colorretal, uma réplica inflável de dois metros de altura de um cólon percorre o país, permitindo que os “analmente” curiosos passem e inspecionem pólipos potencialmente cancerígenos “de dentro”. Mas se a mamografia parecer refinado tipo de sadismo, as colonoscopias imitam uma agressão sexual real. Primeiro, o paciente é sedado – muitas vezes com o que é popularmente conhecido como “boa noite, Cinderela”, Versed – e depois um longo tubo flexível, com uma câmara em uma extremidade, é inserido no reto e até o cólon. O que me repeliu ainda mais do que esse procedimento perverso foi o dia do jejum e dos laxantes que deveriam precedê-lo, a fim de garantir que a pequena câmara encontrasse algo diferente de fezes. Esse exame eu adiava todo ano, até que finalmente me senti segura, sabendo que, como o câncer de cólon geralmente é de crescimento lento, é improvável que qualquer pólipo cancerígeno floresça até que eu já esteja perto de morrer por outras causas.

E aconteceu que meu clínico, o Diretor de um grupo de médio porte, enviou uma carta anunciando que estava suspendendo sua prática comum para oferecer um novo nível de “atendimento de concierge” para aqueles dispostos a desembolsar US$ 1.500,00 por ano além do que eles já pagam pelo plano de saúde. O atendimento de elite incluiria acesso 24 horas ao médico, visitas domiciliares e, a carta prometia, todos os tipos de testes e exames, além dos rotineiros. Foi quando minha decisão se cristalizou: marquei uma consulta e disse a ele cara a cara que pra começo de conversa fiquei consternada com sua disposição de deixar seus pacientes menos abastados, que pareciam compor grande parte da população de sala de espera. E que eu não queria mais testes; Eu queria um médico que pudesse me proteger de procedimentos desnecessários. Eu permaneceria com as massas de pacientes ordinários e descartados ao acaso.

É claro que toda essa triagem e testes desnecessários acontecem porque os médicos pedem, mas há uma crescente rebelião dentro da profissão médica. O diagnóstico exagerado está começando a ser reconhecido como um problema de saúde pública, e às vezes é chamado de “epidemia”. É um assunto apropriado para conferências médicas internacionais e livros carregados de evidências, como “Super-diagnosticados: tornar as pessoas doentes em busca de saúde” por H. Gilbert Welch e seus colegas de Dartmouth, Lisa Schwartz e Steve Woloshin. Até mesmo a colunista de saúde Jane Brody, há muito uma animadora de torcida para os cuidados preventivos padrão, agora recomenda que pensemos duas vezes antes de nos submetermos ao que antes eram procedimentos de triagem de rotina.

O médico e blogueiro John M. Mandrola aconselha sem rodeios: em vez de ter medo de não detectar doenças, tanto os pacientes como os médicos devem ter medo da assistência médica. A melhor maneira de evitar erros médicos é evitar cuidados médicos. O padrão deve ser: estou bem. A maneira de continuar assim é continuar fazendo boas escolhas – não fazer com que meu médico procure problemas. Com a idade, a análise de custo / benefício muda. Por um lado, os cuidados de saúde tornam-se mais acessíveis – para os americanos, afinal – aos 65 anos, quando uma pessoa é elegível para o Medicare. Exortações para passar por exames e testes continuam, com entes queridos se juntando ao coro. Mas no meu caso, o apetite por interações médicas de qualquer tipo diminui a cada semana que passa. Suponhamos que os cuidados preventivos revelassem alguma condição que exigiria tratamentos agonizantes ou sacrifícios de minha parte – cirurgia desfigurante, radiação, limitações drásticas no estilo de vida. Talvez essas medidas possam acrescentar anos à minha vida, mas seria uma vida dolorosa e esgotada que elas prolongaram.

No seu estado atual, a medicina preventiva geralmente se estende ao final da vida: pessoas com 75 anos são encorajadas a fazer mamografia; as pessoas que já estão sob o controle de uma doença terminal podem ser submetidas a exames para outras doenças. Em uma reunião médica, alguém relatou que uma mulher de 100 anos de idade tinha acabado de fazer sua primeira mamografia, fazendo com que a platéia “vibrasse”. Uma razão para o desejo compulsivo de testar e selecionar e monitorar é o lucro, e isso é especialmente verdadeiro nos Estados Unidos, com seu sistema de saúde altamente privado e com fins lucrativos. Como é que um médico – ou hospital ou empresa farmacêutica – pode ganhar dinheiro com pacientes essencialmente saudáveis? Submetendo-os a testes e exames que, em quantidade suficiente, são obrigados a detectar algo errado ou, pelo menos, digno de acompanhamento. Gilbert e seus co-autores oferecem uma analogia vívida, emprestada de um especialista em geometria fractal: “Quantas ilhas cercam as costas da Grã-Bretanha?” A resposta, claro, depende da resolução do mapa que você está usando, e também de como você está definindo um “ilha”. Com tecnologias de alta resolução, como tomografia computadorizada, a detecção de pequenas anormalidades é quase inevitável, levando a mais testes, prescrições e consultas médicas. E a tendência para o excesso de teste é amplificada quando o médico que recomenda os testes tem um interesse financeiro na instalação de rastreamento ou de imagem para a qual ele encaminha as pessoas.

Não é apenas um sistema de saúde com fome de lucros que impulsiona o excesso de testes e o diagnóstico excessivo. Consumidores individuais, isto é, pacientes antigos e potenciais, podem exigir o teste e até mesmo ameaçar um processo de negligência se sentirem que está sendo retido. Nas últimas duas décadas, grupos de “defesa do paciente” surgiram para “marcar” dezenas de doenças e divulgar a necessidade de exames. Muitos têm seus próprios porta-vozes – Katie Couric para câncer coloretal, Rudy Giuliani para câncer de próstata – e cada um tem sua própria fita colorida – rosa para câncer de mama, roxo para testicular, preto para melanoma, um padrão de quebra-cabeça para o autismo e assim por diante – bem como dias ou meses especiais para esforços concentrados de publicidade e lobby. O objetivo de tudo isso é geralmente “conscientização”, ou seja, uma disposição para passar pela triagem apropriada, como mamografias e testes de PSA.

Existem até defensores persistentes ​​para testes desacreditados. Quando a Força-Tarefa de Serviços Preventivos dos EUA decidiu retirar sua recomendação de mamografias de rotina para mulheres com menos de 50 anos, até mesmo algumas organizações feministas de saúde feministas, que eu esperava serem mais críticas às práticas médicas convencionais, manifestaram-se em protesto. Uma pequena faixa de mulheres, identificando-se como sobreviventes de câncer de mama, fez uma demonstração em uma rua fora do escritório da força-tarefa, como se exigisse que seus seios fossem apertados. Em 2008, a mesma força-tarefa deu ao PSA o teste de “D”, mas defensores como Giuliani, que insistiram que o teste salvou sua vida, continuaram a pressioná-lo, assim como a maioria dos médicos.

Muitos médicos justificam testes de valor duvidoso pela “paz de espírito” que supostamente conferem – exceto, é claro, àqueles que recebem resultados falso-positivos. O câncer de tireoide é particularmente vulnerável ao diagnóstico excessivo. Com a introdução de técnicas de imagem mais poderosas, os médicos conseguiram detectar muitos pequenos caroços nos pescoços das pessoas e removê-los cirurgicamente, quer a cirurgia fosse garantida ou não. Estima-se que 70% a 80% das cirurgias de câncer de tireóide realizadas em mulheres americanas, francesas e italianas na primeira década do século XXI tenham sido consideradas desnecessárias. Na Coréia do Sul, onde os médicos eram especialmente conscientes sobre a triagem da tireoide, o número subiu para 90% (os homens também foram super-diagnosticados, mas em números muito menores). Os pacientes pagam um preço por essas cirurgias, incluindo uma dependência vitalícia dos hormônios da tireoide. E como estes nem sempre são totalmente eficazes, o paciente pode ficar cronicamente “deprimido e lento”.

Até agora, não consigo detectar a revolta popular contra o regime de exames médicos desnecessários e muitas vezes prejudiciais. Dificilmente alguém admite rejeitar pessoalmente os testes, e um que o fez – o escritor de ciência John Horgan em um blog da Scientific American sobre por que ele não passará por uma colonoscopia – enfraqueceu seu argumento bem fundamentado descrevendo a si mesmo como um “fanático anti-exames”. A maioria das pessoas faz piadas sobre o desagrado dos procedimentos recomendados, enquanto se submetem ao que se espera deles. Mas há uma rebelião significativa se formando em outra frente. Cada vez mais, lemos sobre a “medicalização do morrer”, geralmente focada em um pai ou avô que embora tivesse deixado claro seu pedido por uma morte natural e não-médica, acabou amarrado por cabos e tubos a uma cama de UTI. Os médicos veem isso o tempo todo – pessoas espirituosas silenciadas por ventiladores, a incontinência fastidiosa – e alguns estão determinados a não deixar que a mesma coisa aconteça a eles mesmos. Eles podem recusar o cuidado, sabendo que é mais provável que leve à incapacidade do que à saúde, como o ortopedista que, ao receber um diagnóstico de câncer de pâncreas, encerrou imediatamente sua prática e foi para casa para morrer em relativo conforto e paz. Alguns médicos são mais decididamente proativos e têm tatuados “NO CODE” ou “DNR”, que significa “não reanimar”. Eles rejeitam as mesmas medidas drásticas de final de vida que rotineiramente infligem aos seus pacientes.

Ao desistir da “Medicina” Preventiva, estou apenas levando essa linha de pensamento um passo adiante: não apenas rejeito o tormento de uma morte medicalizada, mas me recuso a aceitar uma vida medicalizada, e minha determinação apenas se aprofunda com a idade. À medida que o tempo que me resta encolhe, cada mês e dia se tornam preciosos demais para gastar em salas de espera sem janelas e sob o escrutínio frio das máquinas. Ter idade suficiente para morrer é uma conquista, não uma derrota, e a liberdade que ela traz vale a pena celebrar.

Retirado do livro:  Natural Causes: An Epidemic of Wellness, the Certainty of Dying, and Killing Ourselves to Live Longer

Tradução e adaptação: Dr Denis Colares, médico Emergencista.

Barbara Ehrenreich é autora de mais de uma dúzia de livros, incluindo o bestseller do New York Times, “Nickel and Dimed”. Vencedor do Prêmio Erasmus de 2018 por seu trabalho como jornalista investigativa, ela tem um PhD em imunologia celular da Universidade Rockefeller e escreve frequentemente sobre cuidados de saúde e ciência médica, entre muitos outros assuntos. Ela mora na Virgínia.

Pré-Tratamento na Intubação: quando NÃO-fazer?

Se você perguntar a qualquer médico que já leu sobre intubação de sequencia rápida(ISR) – nem que tenha sido um resumo sobre o tema – ele pode te responder sobre pré-tratamento. Lidocaína e Fentanil, correto?  (A literatura lista muitas outras drogas com indicações específicas como albuterol, betabloqueadores, pregabalina, sulfato de magnésio, atropina…) E o gráfico acima, um diagrama de Venn mostrando as indicações de pré-tratamento, reproduzido em aulas e livros até bem recentemente, provavelmente é familiar. O racional é sólido, não negamos. Começa assim: o estimulo da laringoscopia e intubação causa respostas reflexas e estímulo nociceptivo? Não há dúvidas. Aí a gente usa uns remedinhos para bloquear esses efeitos “do mal”? Pode ser feito. E traz algum benefício para o doente? Bem… er… Há controvérsias! Mas esses remedinhos podem fazer mal? Certamente! Assim não tem muita dúvida é de quando não-fazer. Aqueles casos em que está claro e óbvio que você vai prejudicar seu paciente se inventar de fazer Fentanil. Não vou abordar as antigas indicações, porque o nível de evidência de benefícios é muito baixo, levando a discussões bizantinas… Vamos conversar sobre quando não-fazer Fentanil? Lidocaína nunca fez muito sucesso e a recomendação bem estabelecida atual é contrária ao seu uso como pré-tratamento. Então não vou nem bater na coitada da lidocaína, vamos falar só do Fentanil mesmo. Antes, deixa explicar o porque de ter riscado o gráfico. É que esse diagrama é uma super-simplificação bem perigosa.

A idéia por trás desse diagrama é muito bonitinha: se seu paciente estiver dodói do “A” de Asthma(ou outra doença reativa das Vias Aéreas), ele deve usar lidocaína. Se ele estiver dodói do “B” de Brain, ele deve usar lidocaína e fentanil. Mas se ele estiver dodói do “C” de Cardiovascular, ele deve usar Fentanil. Legal, né? Parece fácil. Acontece que as coisas quase nunca não são simples assim. O doente crítico é sempre complexo. Na Emergência, a gente tem pouca informação, pouco tempo, pouco pessoal, poucos recursos… costumo dizer que a única coisa que geralmente não falta na Emergência são pacientes! Assim, as escolhas que a gente faz devem ser racionais, sem adicionar coisas supérfluas, que melhor utilizem os parcos recursos, como por exemplo a enfermagem, – sempre tão sobrecarregada nas nossas Emergências – pra diluir mais uma droga desnecessária, infundir uma droga desnecessária, monitorizar para efeitos colaterais de uma droga desnecessária como uma Parada Cardíaca, sabe? Então ao invés da fase de pré-tratamento, que classicamente já era opcional, o que recomendamos é que você encare a peri-intubação como um todo, englobando a ressuscitação pré-intubação e os cuidados pós-intubação. O ato mecânico de passar o tubo entre as cordas vocais é fácil, qualquer um consegue. O desafio da intubação na Emergência está em manter seu doente estável durante todo o procedimento, sem hipoxemia, sem hipotensão e conseguir intubar na primeira tentativa. O resto é acessório. Desde há muito a gente defende que o paciente tem que ser estabilizado antes da intubação para evitar hipotensão e PCR peri-intubação. Ressuscitar antes de intubar. Isso requer alguma paciência, não negamos. A regra é se ter pressa para terminar o procedimento. Muito admira que tenha-se adicionado o Fentanil praticamente como regra nas intubações da Emergência. O livro de referência para manejo de vias aéreas da Residência de Medicina de Emergência deixa muito claro: pacientes hipotensos não podem usar pré-tratamento. Pra mim tava claro, pra mim era óbvio, não cabe interpretação no texto que dizia em 2011:

“Opióides no pré-tratamento estão contra-indicados no paciente com comprometimento hemodinâmico incluindo aqueles com choque compensado”

Walls, Ron; Murphy, Michael. Manual of Emergency Airway Management. Lippincot (Wolters Kluwer Health).

Tem como desviar dessa verdade? Acho que não. Assim, Fentanil em intubação de Emergência deveria ser uma raridade e não a regra. Está claramente contra-indicado:

  1. Em pacientes hipotensos (se quiser estabelecer uma regra geral use a PA sistólica abaixo de 90mmHg, lembrando dos cardiopatas graves que podem estar relativamente compensados mesmo com essa pressão);
  2. No Choque compensado. Sabe aquele paciente que chega com hipotensão e responde a volume? Esse cara está apenas compensado, considere ele chocado e perigoso.
  3. No Choque oculto. O paciente com PA normal porém lactato elevado(sem outras causas de lactato elevado como intoxicações exógenas, pós-ictal…) E o uso do Índice de Choque(Frequência cardíaca/PA Sistólica) maior ou igual a 1(parece ser um preditor interessante de hipotensão peri-intubação).

Peraí, e a dor? Como foi dito antes a laringoscopia e a intubação são estímulos nociceptivos vigorosos. E aí, vai “no seco”? No caso da Emergência, estamos falando de pacientes crítico por vezes com baixo fluxo sanguíneo cerebral, recebendo dose suficiente de sedativos e que portanto não terão memória do ocorrido. Para simplificar: tem dor sim, mas não tem sofrimento. Estamos falando de intubações de Emergência, isso não se aplica ao Anestesista no Centro Cirúrgico em procedimentos eletivos. O Chris Nickson, do Life in The Fast Lane, desenhou melhor do que eu jamais seria capaz a pirâmide de hierarquias de necessidades da intubação/sedação na Emergência:

Em outras palavras: o mais importante, a base da pirâmide é manter seu paciente vivo. Em segundo lugar, manter sem comprometimento fisiológico, como por exemplo hipotensão ou hipoxemia. Somente aí se preocupe com a dor, a memória dos eventos e lá em cima, menos importante, a consciência. Exatamente isso: você vai sedar o paciente e a menor das suas preocupações é conseguir colocar ele pra dormir!

Não sei se você está bem convencido do quanto prejudica seu paciente quando provoca aquela “hipotensãozinha” depois do Fentanil ou do Dormonid. Então olha só:

Esse estudo publicado na PLoS One em novembro de 2014 foi realizado na Emergência e analisou 2403 incubações, detectando RCP em cerca de 2% dos pacientes. Segue a Tabela 1:

Esses pacientes que paravam nos 10 minutos após intubação tinham o dobro de chance – quando comparados ao grupo controle – de evoluir a óbito em até 28 dias. Veja que a maioria das PCR ocorreram no primeiro minuto pós-tubo:

E nesses pacientes a hipotensão antes da intubação foi preditor independente de PCR com Odds Ratio de 3.67(p = 0,01). Quer mais? Pois tome:

Esse estudo do Journal of Critical Care de agosto de 2012, também conduzido na Emergência, mostrou que dos 465 pacientes incluídos no estudo cerca de 25% deles apresentou hipotensão no pós-tubo e esses tiveram mortalidade intra-hospitalar mais alta, com OR de 1.9. Segue a Tabela 1:

Esses número são por si só impressionantes, mas alguns subgrupos se prejudicam ainda mais de eventos – mesmo que passageiros – de hipotensão e hipoxemia. O doente neurocrítico em especial. Com evidências abundantes de que dobra-se a mortalidade com apenas 1 episódio de hipotensão.

Finalmente, na 5a edição do Walls Manual of Emergency Airway Management a idéia de pre-tratamento foi afastada. Considere que essa “fase” não existe. O ideal é entender a peri-intubação como um todo e a pré-intubação como otimização hemodinâmica que pode incluir fazer alíquotas de volume, iniciar vasopressores, antiarrítmicos, nebulizar com beta-agonistas, fazer betabloqueador, fazer pre-oxigenação com pressão positiva controlada entre outras coisas divertidas. Então você tem um doente crítico em mãos, você olha pra ele como doente crítico, você vai ter que decidir sobre quanto volume cabe, quando começa vasopressores, como deve titular essas drogas. Nada de diagrama pra te ajudar a decidir o remedinhos como se fosse fácil e simples. Doente crítico nunca é básico. Nessa hora você pode lançar mão de uma série de drogas, inclusive Fentanil cuja única indicação é nas Emergências Hipertensivas. Assim, se o paciente não estiver com a pressão muito alta e lesão de órgão-alvo, não deve ser feito. Sugiro que reserve para:

  • Doença coronariana grave em Emergência Hipertensiva
  • Dissecção de Aorta em Emergência Hipertensiva

E infunda lentamente. 60 segundos. Isso deve ser feito durante a fase de pre-oxigenação, mas deve ser sempre a última das drogas a ser infundida antes do Sedativo + Bloqueador. Ponto final. Simples assim. Na dúvida, não faça. Seu doente já tem motivos demais para fazer hipotensão, não seja seu “Fentanilzinho” mais um deles.

EM Mindset – Uma cabeça de Emergencista

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“Medicina de Emergência: a especialidade que invade os 15 minutos mais interessantes de todas as outras especialidades”

– Dan Sandberg, BEEM Conference, 2014[1]

Por que somos diferentes?  Como enxergar a diferença entre a Medicina de Emergência e as outras especialidades médicas?  Nós trabalhamos em um ambiente diferente, em horários específicos e com pacientes mais especiais do que qualquer outra especialidade. Nosso lema poderia ser: “Qualquer um, com qualquer coisa, em qualquer horário”[2]

Enquanto outros medicos se detém na pergunta “O que esse paciente tem?”(isto é, “Qual o diagnóstico?”), Médicos Emergencistas estão sempre pensando “Do que esse paciente precisa?”[3] Agora ou Em 5 minutos ou Em duas horas… E isso envolve uma cabeça diferente? Sim, porque o conceito de manejar pacientes com sintomas e não com diagnósticos é quase alienígeno para a maioria dos nossos colegas médicos. Sim, fazemos isso todos os dias, várias vezes durante cada plantão. Toda vez que me apresento a um paciente, nunca sei em qual direção as coisas irão se encaminhar e por isso mesmo às vezes sinto a necessidade de dar um aviso antes de começar:

Olá, Pessoa Desconhecida, eu sou o Doutor Joe Lex. Eu vou passar com você um tanto de tempo suficiente só pra saber se sua doença vai inventar de tentar te matar enquanto você está em minhas mãos, ou se devo interná-lo pra que sua doença possa tentar te matar na mão de algum de meus colegas.[4],[5]

Você não me conhece, eu não tenho intimidade com você, mas você deve confiar a mim sua vida e seus segredos, assim como eu confio que as informações que você vai me dar são honestas. Depois desse nosso encontro, provavelmente não nos veremos novamente. Você pode estar vivendo um dos piores dias de sua vida, mas pra mim é rotina. Eu posso esquecer de você minutos depois da alta, mas é provável que você lembre de mim por meses e anos ou até mesmo pro resto da sua vida. Eu vou fazer muitas, muitas perguntas. Eu vou dar o meu melhor para fazer as perguntas corretas, na ordem correta, de modo que eu possa tomar a decisão mais acertada. Eu quero que você me conte sua história, mas pra que eu possa entender a sua história, talvez eu tenha que interrompê-lo diversas vezes para esclarecer alguns pontos. Cada pergunta que te faço tem um motivo específico e na média, em um plantão de 8 horas, eu tomo cerca de 10.000 decisões conscientemente ou não – qual paciente prorizar, qual a próxima pergunta, quais manobras de exame físico vou fazer, se isso que escutei foi mesmo um sopro, qual exame vou pedir, qual exame de imagem eu quero ver, qual especialista não vai me devolver se eu te encaminhar, se essa enfermeira vai acertar a medicação e se eu vou lembrar de te dar o atestado quando te der alta… então se eu errar 0,1% das vezes, cometerei 10 erros hoje.[7]

Eu espero que para o bem de nós dois você tenha uma Emergência bem óbvia com sinais e sintomas bem característicos: gonorréia, sub-luxação patelar, dor torácica com uma Supra de ST bem óbvio ao ECG. Essas coisas eu reconheço e inicio o tratamento sem nem pensar. Se no entanto o seu problema for menos óbvio a probabilidade de tirar conclusões erradas é maior.[8]

Fico feliz em te informar que o corpo humano é bem resistente. Nós humanos evoluímos milênios aprendendo a sobreviver então, mesmo que eu erre inicialmente, a probabilidade de isso causar dano à você é menor. Foi Voltaire quem nos disse lá no século XVIII que “A arte da Medicina consiste em distrair o paciente enquanto a natureza cura a doença”. Isso continua sendo uma verdade em boa parte dos casos. Além disso, nos disse Lewis Thomas que “O grande segredo dos médicos, aprendido por internistas e compreendido pelas esposas dos internistas, porém ainda escondido dos leigos é que muitas doenças ficam boas sozinhas. O fato é que tudo já fica melhor na manhã seguinte”.[9]

Lembre-se, você não me procura com um diagnóstico, você me procura com sintomas. Você pode ter 1 ou mais das 10.000 doenças e afecções existentes e sejamos honestos: as chances de eu acertar com absoluta certeza não são boas. Você pode ter uma apresentação incomum de uma doença comum ou uma apresentação comum de um problema incomum. Se a doença estiver bem no começo, posso errar até coisas graves como um infarto ou sepse. Se você me esconder seus hábitos sexuais ou uso de drogas e álcool, eu posso não fazer as perguntas corretas e portanto chegar a conclusões totalmente erradas sobre o que você tem e sobre o que você precisa.[10] O caminho para a morte, por outro lado é bem direto – insuficiência respiratória, insuficiência cardiaca, do cérebro, do metabolismo… [11]

Talvez você esteja decepcionado por não estar sendo assistido por um “especialista”. Muitas pessoas acham que caso tenham um infarto deveriam ser atendidas por um cardiologista. Então eles acham que o sintoma de “dor no peito” é a senha para o médico de coração. Mas e se a dor for acompanhada de náuseas e falta de ar? E se essa dor não for infarto mas uma dissecção de aorta? Então entenda que você está sendo tratado por um especialista sim: nós somos exaustivamente treinados para diferenciar o banal do que causa risco à sua vida e o clínico do cirúrgico. Nossa Especialidade serve pra isso, nossa cabeça funciona assim.[12]

Se você insiste em perguntar: “o que eu tenho, Dr Lex?”, você pode ficar decepcionado com a minha resposta: “não sei, mas sei que é seguro que você vá pra casa” sem te dar um diagóstico ou sequer pedir algum exame. Sim, eu sei que se te der algum rótulo como “gastrite” ou “começo de pneumonia” você vai se sentir melhor, como se seu problema estivesse resolvido e até outros médicos ficarão mais felizes porque se prenderão a esse diagnóstico que dei e assim nunca saberemos de verdade.[13]

Mas aqui temos também algumas boas notícias: Eu e você estamos preocupados que o pior esteja acontecendo. Você teve uma dor de cabeça e pensou “Será que eu tenho um tumor cerebral?” ou você teve uma dor abdominal e pensou: “sera que é câncer?” Pois é, eu também pensei nessas hipóteses e sei que se você por acaso não escutar as palavras “câncer” ou “AVC” saídas da minha boca você vai me achar um idiota por não ser capaz de ler a sua mente e adivinhar que são essas hipóteses que te preocupam. Eu entendo que por mais banal que seja a sua queixa, você pode estar preocupado que seja algo sério, porque foi importante o bastante pra te fazer sair de casa e procurer assistência médica na Emergência[14].

Enquanto a gente conversa, seremos provavelmente interrompidos. Saiba que eu sou interrompido diversas vezes por hora – atendendo ligação de colegas, orientando o Atendimento Pré-Hospitalar, explicando minha prescrição à enfermagem ou posso ser chamado pra attender a alguém mais doente do que você. Vou me esforçar para que essas interrupções não nos atrapalhem. [15]

Usarei o meu conhecimento e experiencia para chegar as conclusoes corretas sobre você. Mas minha visão tem diversos vieses e conhecer esses vieses não é o suficiente para mudá-los. [16] Por exemplo, eu conheço a fisiopatologia da Embolia Pulmonar em detalhes mas a literatura me diz que vou errar o diagnóstico pelo menos metade das vezes. [17] E olha so que interessante: cometerei esses erros de diagnóstico quer eu pense rapidamente ou me detenha no seu caso analisando racionalmente. Emergencistas são reconhecidos por fazer diagnósticos rápidos e com pouca informação (Type 1 thinking).[18] A Psicologia cognitiva nos diz que podemos reduzir os erros usando raciocínio analítico (Type 2 thinking).[19] Na Emergência os dois produzem a mesma quantidade de erros e a chave do sucesso provavelmente é saber quando decider rapidamente,       quando usar o raciocínio analítico e quando mesclar os dois [20]

Depois que eu terminar aqui, vou ao computador e provavelmente vou passar a mesma quantidade de tempo que fiquei com você escrevendo no seu prontuário. Eu preciso fazer isso para que o hospital seja remunerado corretamente. Quanto mais eu for cuidadoso com o meu registro, menos problemas teremos para cobrar do plano de saúde o nosso atendimento. Além disso seu prontuário pode ser inútil para outros profissionais se eu não me esforçar pra descrever fielmente suas queixas e todo o racional que direcionou seu tratamento. No meu plantão de 8 horas eu vou dar aproximadamente 4000 cliques. [21]

Como? Você disse que não tem plano de saúde? Ah, tudo bem. O Governo vai pagar seu atendimento emergencial – embora eu não tenha idéia de como isso vai acontecer – só sei que não posso te negar atendimento. Isso é arriscado para mim e para você, por motivos diferentes…

Olha, você veio ao lugar certo porque se você precisar de qualquer procedimento emergencial como intubação orotraqueal ou toracostomia, deixa comigo. Se precisar parir aqui mesmo ou que eu controle uma hemorragia grave, deixa comigo. Eu faço punção lombar, eu faço suturas, reduzo articulações luxadas, faço acesso central, marcapasso intravenoso, retiro corpos estranhos dos olhos, ouvidos e até do reto. Faço convulsões cessarem e seguro sua mão se estiver com medo. Eu te acompanho nos seus momentos finais se for o caso.[23]

A Medicina de Emergência meio que irrita outras especialidades, sabe? É que estamos lá 24 horas por dia, 7 dias da semana, e quando a gente vê necessidade, chama mesmo outros especialistas de sobreaviso. Sim, somos treinados para encher a paciência de medicos de sobreaviso quando necessário. [24],[25]

Ah, eu vi milhares de pacientes únicos nos meus quase 50 anos de experiência. Mas toda vez que penso em escrever um livro sobre a minha carreira eu paro e penso: “se fizer isso só vai conseguir adicionar mais do mesmo ao que já foi ditto – é que o que você aprendeu não pode ser facilmente ensinado e nunca vai ser facilmetne aprendido por outros. O que você considera sabedoria, outros consideram lugar-comum.” [26]

Autor Norman Douglas escreveu: “O que é a sabedoria se não uma coleção de lugares-comuns? Pegue 50 dos atuais provérbios e vais perceber que eles são secos e diretos. Eles encarnam no entanto a experiência da raça humana e aquele que se balize por eles erra muito pouco. Alguém já agiu assim e obteve paz por espelhar-se na experiencia de outros? Não, desde o início dos tempos! Devemos caminhar através de fogo” [27]

Ei, você já ouviu falar em John Coltrane? Ele era um músico sensacional que se consagrou como um dos maiores compositores do século XX. Ele começou modestamente imitando músicos mais velhos mas rapidamente amadureceu em sua originalidade. Ele escutava Miles Davis, Thelonius Monk, música Africana e Indiana, cristã, hindu e budista. E dessa mistura ele criou algo único diferente de tudo o que havia escutado antes. Coltrane mudou a história da música ao alterar o que as pessoas poderiam esperar da música. De maneira similar a Medicina de Emergência escutou a cirurgia, pediatria, terapia intensiva, obstetricia, endocrinologia e psiquiatria para criar algo único e mudamos a história da Medicina por mudar nas pessoas o que elas podem esperar da Medicina…

Agora que já dei meu aviso, Pessoa Desconhecida, te pergunto: em que posso te ajudar?[28]

Dr Joe Lex é Emergencista, Clinical Professor of Emergency Medicine, Temple University School of Medicine.


(Texto originalmente publicado em http://www.emdocs.net/em-mindset-joe-lex-thinking-like-an-emergency-physician/ Traduzido para o português e adaptado por Dr Denis Colares, Médico Emergencista.)

Referências / Leitura Complementar

[1] https://twitter.com/jeremyfaust/status/447822776447930368 Accessed 27 December 2015.

[2] http://www.amazon.com/Anyone-Anything-Anytime-Emergency-Medicine/dp/1560537108.  Accessed 27 December 2015.

[3] http://emupdates.com/wp-content/uploads/2010/09/eThinking-Slides.pdf.  From a talk by Reuben Strayer.  Accessed 27 December 2015.  See slide #12

[4] Alimohammadi H, Bidarizerehpoosh F, Mirmohammadi F, Shahrami A, Heidari K, Sabzghabaie A, Keikha S.  Cause of Emergency Department Mortality; a Case-control Study.  Emerg (Tehran). 2014 Winter;2(1):30-5.

[5] Olsen JC, Buenefe ML, Falco WD.  Death in the emergency department.  Ann Emerg Med. 1998 Jun;31(6):758-65.

[6] http://www.smh.com.au/national/the-day-i-meet-you-in-the-emergency-department-will-probably-be-one-of-the-worst-of-your-life-20151105-gkrbm7.html  Accessed 27 December 2015

[7] Croskerry P.  Achieving quality in clinical decision making: cognitive strategies and detection of bias.  Acad Emerg Med 2002;9:1184–204.

[8] Phua DH, Tan NC.  Cognitive aspect of diagnostic errors.  Ann Acad Med Singapore. 2013 Jan;42(1):33-41.

[9] Thomas L.  Your very good health.  N Engl J Med. 1972 Oct 12;287(15):761-2.

[10] Croskerry P, Sinclair D.  Emergency medicine: A practice prone to error?  CJEM. 2001 Oct;3(4):271-6.

[11] Rosen P.  The biology of emergency medicine.  JACEP. 1979 Jul;8(7):280-3.

[12] Zink BJ.  The Biology of Emergency Medicine: what have 30 years meant for Rosen’s original concepts?  Acad Emerg Med. 2011 Mar;18(3):301-4.

[13] Croskerry P.  Commentary: Lowly interns, more is merrier, and the Casablanca Strategy.  Acad Med. 2011 Jan;86(1):8-10.

[14] Croskerry P.  The cognitive imperative: thinking about how we think.  Acad Emerg Med. 2000 Nov;7(11):1223-31.

[15] Chisholm CD, Collison EK, Nelson DR, Cordell WH.  Emergency department workplace interruptions: are emergency physicians “interrupt-driven” and “multitasking”?  Acad Emerg Med. 2000 Nov;7(11):1239-43.

[16] Croskerry P.  From mindless to mindful practice–cognitive bias and clinical decision making.  N Engl J Med. 2013 Jun 27;368(26):2445-8.

[17] Pineda LA, Hathwar VS, Grand BJ.  Clinical suspicion of fatal pulmonary embolism. Chest 2001;120:791-795

[18] Berner ES, Graber ML. Overconfidence as a cause of diagnostic error in medicine. Am J Med 2008;121 (Suppl):2–33.

[19] Redelmeier D. The cognitive psychology of missed diagnoses. Ann Intern Med 2005;142:115–20.

[20] Norman GR, Eva KW.  Diagnostic error and clinical reasoning.  Med Educ. 2010 Jan;44(1):94-100.

[21] Hill RG Jr, Sears LM, Melanson SW.  4000 clicks: a productivity analysis of electronic medical records in a community hospital ED.  Am J Emerg Med.  2013 Nov;31(11):1591-4.

[22] http://www.acep.org/Clinical—Practice-Management/The-Impact-of-Unreimbursed-Care-on-the-Emergency-Physician/  Accessed 27 December 2015.

[23] https://www.acep.org/uploadedFiles/ACEP/Practice_Resources/policy_statements/2013%20EM%20Model%20-%20Website%20Document(1).pdf  Accessed 27 December 2015.  See pp 44-47.

[24] Johnson LA, Taylor TB, Lev R.  The emergency department on-call backup crisis: finding remedies for a serious public health problem.  Ann Emerg Med. 2001 May;37(5):495-9.

[25] Asplin BR, Knopp RK.  A room with a view: on-call specialist panels and other health policy challenges in the emergency department.  Ann Emerg Med. 2001 May;37(5):500-3.

[26] Norman G, Young M, Brooks L.  Non-analytical models of clinical reasoning: the role of experience. Med Educ.  2007 Dec;41(12):1140-5.

[27] South Wind by Norman Douglas.  THE MODERN LIBRARY; Thus edition (1925).  Page 176.

[28] Wolffhechel K, Fagertun J, Jacobsen UP, Majewski W, Hemmingsen AS, Larsen CL, Lorentzen SK, Jarmer H.  Interpretation of appearance: the effect of facial features on first impressions and personality.  PLoS One. 2014 Sep 18;9(9):e107721..

Virtudes e Vícios da Medicina de Emergência

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Médicos Emergencistas trabalham na Emergência, Pronto-Atendimento e Sala de Ressuscitação. Atendemos a tudo o que vai entrando pela porta, não importando a quantidade ou velocidade com que entre. Em verdade somos a porta da frente do hospital. A única porta que nunca se fecha. A especialidade é definida por diversas características que, a depender do seu ponto de vista, são virtudes ou vícios e por vezes são as duas coisas ao mesmo tempo. Por isso mesmo as apresentarei no formato de prós X contras.

1. O paciente indiferenciado

Nenhum outro especialista lida rotineiramente com tantos pacientes sobre os quais ele nada sabe. O nosso paciente típico foi encontrado em coma na rua. Ele pode estar a minutos de sua morte ou somente muito bêbado e precisando de um cochilo. Nós precisamos diferençar sem sequer saber seu nome, quem dirá sua história patológica pregressa ou eventos precipitantes do quadro atual. Fazer esse diagnóstico é muito divertido.

Por outro lado, a incerteza é moeda corrente da Medicina de Emergência. Nós somos obrigados a tomar decisões muito importantes com pouquíssima informação. Nós erramos muito. Por vezes, quando erramos, o paciente morre. Aprender a se sentir confortável diante da incerteza é difícil.

2. Velocidade

Médicos Emergencistas tem que pensar e agir rapidamente. Pesquisas concluíram que a Medicina de Emergência tem a maior densidade de informações por decisão não só entre todas as especialidades médicas como de qualquer outra realização humana. Isso é fantástico pra quem é hiperativo e precisa de estímulo constante. Também é ótimo porque faz com que os plantões passem muito rápido; eu por exemplo me vi diversas vezes com a sensação de que tinha acabado de chegar e já era hora de sair.

Por outro lado, quando se trabalha na emergência, é sempre pesado. Há enorme exigência física.

3. Atendimento sem acompanhamento

Médicos Emergencistas não acompanham os pacientes. Quando você está de folga, está de folga de verdade. Posso desligar meu telefone quando quiser. Essa folga de verdade é uma grande vantagem do ponto de vista da qualidade de vida, porque quando seu plantão acaba às 19h e você tem planos para as 21h, você não falta,  não cancela de última hora, não se atrasa nem é interrompido.

Por outro lado, nós não formamos vínculos com pacientes, até mesmo porque os contumazes usuários de emergências são o tipo de pessoas com as quais você não quer formar vínculos. A Medicina de Emergência pode parecer impessoal e é mais difícil aprender com os próprios erros quando as consequências dos seus erros só aparecem quando o paciente não está mais nas suas mãos. Mas o maior problema aqui é que você nunca ganha presentinhos quando chega o Natal.

4. Trabalhar em regime de plantão

A agenda de Médicos Emergencistas é mais flexível – se eu quero um mês de folga, simplesmente aviso com antecedência, troco ou repasso meus plantões. Esse aspecto combinado com o atendimento sem acompanhamento dá aos emergencistas um tipo de liberdade que não se encontra na maioria das especialidades.

Por outro lado, trabalhamos em turnos sem rotina fixa, incluindo noites. Esse é provavelmente o maior desafio para Médicos Emergencistas. Se você precisa de horários certos para dormir, essa especialidade não é pra você. A Emergência nunca fecha. Assim, se trabalha de noite, finais de semana, feriados… A gente se orgulha de estar sempre a postos pra qualquer coisa, a qualquer hora, mas por vezes isso nos dessincroniza com o resto do mundo.

5. A porta da frente

Nós somos a rede de proteção de todos e, por mais que o sistema mude, isso não vai mudar tão cedo. A Emergência fica sempre no térreo, o acesso é fácil pra quem precisa. Isso te faz sentir-se útil pra comunidade e te dá uma percepção clara do quanto pode ajudar às pessoas que realmente precisam.

Por outro lado, seu fluxo de trabalho é ditado pelo que entra pela porta, o que é quase sempre totalmente imprevisível. A Emergência encontra-se constantemente em um estado de caos controlado – e por vezes totalmente fora de controle. Muitos dos meus pacientes estão tendo o pior dia de suas vidas. Muitos dos meus pacientes vivem à margem da sociedade e um dia normal deles é pior do que o pior dia da vida da maioria das pessoas. É um grande desafio cuidar desses pacientes.

6. Espectro de doenças

O que você puder imaginar, nós já vimos na Emergência. Nenhuma outra especialidade sequer se aproxima da multiplicidade de apresentações e diagnósticos que podem aparecer em um único plantão. E a gente se diverte muito com tanta coisa diferente.

Por outro lado, Médicos Emergencistas usam constantemente o parecer de especialistas. Eu fico um bocado de tempo ao telefone falando com pessoas para os quais eu estou dando trabalho, então muitas vezes eles não querem falar comigo. Além disso, quando ligo para um especialista, sempre falo com alguém que sabe sobre aquilo mais do que eu. Quando tenho um problema de neurologia complexo, ligo pro neurologista e falo com ele sobre neurologia. Quando eu tenho um complexo problema de dermatologia, ligo para o dermatologista e falo sobre dermatologia. E algumas vezes esses especialistas assumem um ar de superioridade insuportável. Isso é mais comum entre os especialistas que nunca passam pela Emergência e por isso não nos conhecem nem nos assistem reduzindo fraturas, ressuscitando pacientes, intubando obesos, drenando tórax, tratando infartos, AVCs, dando conforto ao senhor de 96 anos com CA terminal em seus últimos momentos… Pra quem brilha nesse ambiente, pedir parecer de especialista pode doer no ego. Pra ser Emergencista, você tem que se sentir confortável nessa relação com outros especialistas.

Dr Reuben Strayer é Emergencista, ASSISTANT CLINICAL PROFESSOR of Emergency Medicine no Mont Sinai Hospital, New York-NY.


(Texto originalmente publicado em http://emupdates.com/2011/09/06/the-virtues-and-vices-of-emergency-medicine/ Traduzido para o português e adaptado por Dr Denis Colares, Médico Emergencista.)

Posso Explicar?

Esse Blog é dedicado a todos os Emergencistas do Brasil. Desde há muito, quem se forma em Medicina quase sempre trabalha na Emergência, porém poucos são os que perduram e fazem dela seu principal ofício: clínicos, cirurgiões, anestesiologistas, pediatras… Somos todos Emergencistas! Em todo o Brasil e a partir das mais diversas formações, médicos escolhem pra si a missão de trabalhar, na linha de frente, em uma verdadeira batalha, com os doentes mais graves, o desconhecido no dia-a-dia, toda a dor e sofrimento agudo que bate às portas sempre abertas dos Departamentos de Emergência. A Emergência é o ponto de encontro de todas as especialidades e o Emergencista deve atuar como referência para todos os profissionais e especialidades médicas que atuam no Departamento de Emergência. Esse Blog é feito para os heróis anônimos que fizeram essa escolha difícil. Desde 16 de setembro de 2015 foi reconhecido oficialmente no Brasil a Especialidade de Medicina de Emergência, reconhecendo não só o esforço de décadas de trabalho dos dois Programas de Residência em Medicina de Emergência(Porto Alegre/RS e Fortaleza/CE) como o de milhares de médicos que atuam de maneira dedicada e competente em todo o território nacional, mesmo não tendo formação específica na área.


Além de textos autorais sobre a Medicina de Emergência e notícias sobre a especialidade e titulação, nos dedicaremos a discutir temas de interesse para a prática diária de salvar vidas e aliviar dores. Tudo o que discutiremos busca a prática de uma Medicina a partir das melhores evidencias publicadas, porém não nos responsabilizamos por condutas médicas, mesmo que baseados em nossas discussões. Os relatos feitos aqui podem ou não ser verídicos, bem como detalhes podem ser alterados para preservar a identidade dos envolvidos. Esse site não substitui uma consulta médica e não nos dirigimos à leigos ou profissionais não-médicos. Todas as condutas off-label são sempre responsabilidade do médico assistente e reiteramos o compromisso com as evidências médicas da melhor qualidade disponível.


Ladeamos orgulhosamente com um movimento mundial que se reúne sob o termo FOAMed – Free Open Access Medical Education, que em poucas palavras quer dizer que nosso objetivo é educar a todos os médicos, sem cobrar. Esperamos que os nossos leitores sirvam, como já é de praxe em várias partes do mundo, como verdadeiros revisores(assim sendo, as publicações são peer-reviewed em tempo real no mundo todo) do conteúdo postado, fomentando a produção científica e o acesso das melhores evidências à beira-do-leito.


O conteúdo dos posts não é necessariamente original. Muitas vezes faremos tradução direta com adaptação à realidade brasileira dos posts originais dos melhores sites de FOAMed do mundo, rendendo homenagem à esses grandes Emergencistas e Intensivistas.