Pré-Tratamento na Intubação: quando NÃO-fazer?

Se você perguntar a qualquer médico que já leu sobre intubação de sequencia rápida(ISR) – nem que tenha sido um resumo sobre o tema – ele pode te responder sobre pré-tratamento. Lidocaína e Fentanil, correto?  (A literatura lista muitas outras drogas com indicações específicas como albuterol, betabloqueadores, pregabalina, sulfato de magnésio, atropina…) E o gráfico acima, um diagrama de Venn mostrando as indicações de pré-tratamento, reproduzido em aulas e livros até bem recentemente, provavelmente é familiar. O racional é sólido, não negamos. Começa assim: o estimulo da laringoscopia e intubação causa respostas reflexas e estímulo nociceptivo? Não há dúvidas. Aí a gente usa uns remedinhos para bloquear esses efeitos “do mal”? Pode ser feito. E traz algum benefício para o doente? Bem… er… Há controvérsias! Mas esses remedinhos podem fazer mal? Certamente! Assim não tem muita dúvida é de quando não-fazer. Aqueles casos em que está claro e óbvio que você vai prejudicar seu paciente se inventar de fazer Fentanil. Não vou abordar as antigas indicações, porque o nível de evidência de benefícios é muito baixo, levando a discussões bizantinas… Vamos conversar sobre quando não-fazer Fentanil? Lidocaína nunca fez muito sucesso e a recomendação bem estabelecida atual é contrária ao seu uso como pré-tratamento. Então não vou nem bater na coitada da lidocaína, vamos falar só do Fentanil mesmo. Antes, deixa explicar o porque de ter riscado o gráfico. É que esse diagrama é uma super-simplificação bem perigosa.

A idéia por trás desse diagrama é muito bonitinha: se seu paciente estiver dodói do “A” de Asthma(ou outra doença reativa das Vias Aéreas), ele deve usar lidocaína. Se ele estiver dodói do “B” de Brain, ele deve usar lidocaína e fentanil. Mas se ele estiver dodói do “C” de Cardiovascular, ele deve usar Fentanil. Legal, né? Parece fácil. Acontece que as coisas quase nunca não são simples assim. O doente crítico é sempre complexo. Na Emergência, a gente tem pouca informação, pouco tempo, pouco pessoal, poucos recursos… costumo dizer que a única coisa que geralmente não falta na Emergência são pacientes! Assim, as escolhas que a gente faz devem ser racionais, sem adicionar coisas supérfluas, que melhor utilizem os parcos recursos, como por exemplo a enfermagem, – sempre tão sobrecarregada nas nossas Emergências – pra diluir mais uma droga desnecessária, infundir uma droga desnecessária, monitorizar para efeitos colaterais de uma droga desnecessária como uma Parada Cardíaca, sabe? Então ao invés da fase de pré-tratamento, que classicamente já era opcional, o que recomendamos é que você encare a peri-intubação como um todo, englobando a ressuscitação pré-intubação e os cuidados pós-intubação. O ato mecânico de passar o tubo entre as cordas vocais é fácil, qualquer um consegue. O desafio da intubação na Emergência está em manter seu doente estável durante todo o procedimento, sem hipoxemia, sem hipotensão e conseguir intubar na primeira tentativa. O resto é acessório. Desde há muito a gente defende que o paciente tem que ser estabilizado antes da intubação para evitar hipotensão e PCR peri-intubação. Ressuscitar antes de intubar. Isso requer alguma paciência, não negamos. A regra é se ter pressa para terminar o procedimento. Muito admira que tenha-se adicionado o Fentanil praticamente como regra nas intubações da Emergência. O livro de referência para manejo de vias aéreas da Residência de Medicina de Emergência deixa muito claro: pacientes hipotensos não podem usar pré-tratamento. Pra mim tava claro, pra mim era óbvio, não cabe interpretação no texto que dizia em 2011:

“Opióides no pré-tratamento estão contra-indicados no paciente com comprometimento hemodinâmico incluindo aqueles com choque compensado”

Walls, Ron; Murphy, Michael. Manual of Emergency Airway Management. Lippincot (Wolters Kluwer Health).

Tem como desviar dessa verdade? Acho que não. Assim, Fentanil em intubação de Emergência deveria ser uma raridade e não a regra. Está claramente contra-indicado:

  1. Em pacientes hipotensos (se quiser estabelecer uma regra geral use a PA sistólica abaixo de 90mmHg, lembrando dos cardiopatas graves que podem estar relativamente compensados mesmo com essa pressão);
  2. No Choque compensado. Sabe aquele paciente que chega com hipotensão e responde a volume? Esse cara está apenas compensado, considere ele chocado e perigoso.
  3. No Choque oculto. O paciente com PA normal porém lactato elevado(sem outras causas de lactato elevado como intoxicações exógenas, pós-ictal…) E o uso do Índice de Choque(Frequência cardíaca/PA Sistólica) maior ou igual a 1(parece ser um preditor interessante de hipotensão peri-intubação).

Peraí, e a dor? Como foi dito antes a laringoscopia e a intubação são estímulos nociceptivos vigorosos. E aí, vai “no seco”? No caso da Emergência, estamos falando de pacientes crítico por vezes com baixo fluxo sanguíneo cerebral, recebendo dose suficiente de sedativos e que portanto não terão memória do ocorrido. Para simplificar: tem dor sim, mas não tem sofrimento. Estamos falando de intubações de Emergência, isso não se aplica ao Anestesista no Centro Cirúrgico em procedimentos eletivos. O Chris Nickson, do Life in The Fast Lane, desenhou melhor do que eu jamais seria capaz a pirâmide de hierarquias de necessidades da intubação/sedação na Emergência:

Em outras palavras: o mais importante, a base da pirâmide é manter seu paciente vivo. Em segundo lugar, manter sem comprometimento fisiológico, como por exemplo hipotensão ou hipoxemia. Somente aí se preocupe com a dor, a memória dos eventos e lá em cima, menos importante, a consciência. Exatamente isso: você vai sedar o paciente e a menor das suas preocupações é conseguir colocar ele pra dormir!

Não sei se você está bem convencido do quanto prejudica seu paciente quando provoca aquela “hipotensãozinha” depois do Fentanil ou do Dormonid. Então olha só:

Esse estudo publicado na PLoS One em novembro de 2014 foi realizado na Emergência e analisou 2403 incubações, detectando RCP em cerca de 2% dos pacientes. Segue a Tabela 1:

Esses pacientes que paravam nos 10 minutos após intubação tinham o dobro de chance – quando comparados ao grupo controle – de evoluir a óbito em até 28 dias. Veja que a maioria das PCR ocorreram no primeiro minuto pós-tubo:

E nesses pacientes a hipotensão antes da intubação foi preditor independente de PCR com Odds Ratio de 3.67(p = 0,01). Quer mais? Pois tome:

Esse estudo do Journal of Critical Care de agosto de 2012, também conduzido na Emergência, mostrou que dos 465 pacientes incluídos no estudo cerca de 25% deles apresentou hipotensão no pós-tubo e esses tiveram mortalidade intra-hospitalar mais alta, com OR de 1.9. Segue a Tabela 1:

Esses número são por si só impressionantes, mas alguns subgrupos se prejudicam ainda mais de eventos – mesmo que passageiros – de hipotensão e hipoxemia. O doente neurocrítico em especial. Com evidências abundantes de que dobra-se a mortalidade com apenas 1 episódio de hipotensão.

Finalmente, na 5a edição do Walls Manual of Emergency Airway Management a idéia de pre-tratamento foi afastada. Considere que essa “fase” não existe. O ideal é entender a peri-intubação como um todo e a pré-intubação como otimização hemodinâmica que pode incluir fazer alíquotas de volume, iniciar vasopressores, antiarrítmicos, nebulizar com beta-agonistas, fazer betabloqueador, fazer pre-oxigenação com pressão positiva controlada entre outras coisas divertidas. Então você tem um doente crítico em mãos, você olha pra ele como doente crítico, você vai ter que decidir sobre quanto volume cabe, quando começa vasopressores, como deve titular essas drogas. Nada de diagrama pra te ajudar a decidir o remedinhos como se fosse fácil e simples. Doente crítico nunca é básico. Nessa hora você pode lançar mão de uma série de drogas, inclusive Fentanil cuja única indicação é nas Emergências Hipertensivas. Assim, se o paciente não estiver com a pressão muito alta e lesão de órgão-alvo, não deve ser feito. Sugiro que reserve para:

  • Doença coronariana grave em Emergência Hipertensiva
  • Dissecção de Aorta em Emergência Hipertensiva

E infunda lentamente. 60 segundos. Isso deve ser feito durante a fase de pre-oxigenação, mas deve ser sempre a última das drogas a ser infundida antes do Sedativo + Bloqueador. Ponto final. Simples assim. Na dúvida, não faça. Seu doente já tem motivos demais para fazer hipotensão, não seja seu “Fentanilzinho” mais um deles.

Quem tem medo do Bisturi?

Saiu um artigo na edição de junho de 2016 do Anesthesiology que me deu vontade de falar sobre via aérea cirúrgica. É um tema que eu particularmente gosto muito e dentre as frases mais importantes sobre o tema destaco uma do Scott Weingart:

“Se você não está disposto a realizar uma cricotireoidotomia, não deveria estar tentando intubar na Emergência.”

Pode parecer pesado, mas desde que ouvi essa frase em um de seus podcasts, venho refletindo sobre isso e não consigo discordar. Claro que o método de escolha pra manejo de Vias Aéreas na Emergência é sem dúvida a Intubação de Sequência Rápida. E uma das pouquíssimas contra-indicações(relativa) seria uma Via Aérea Difícil. Obviamente antes de bloquear o doente a gente tenta prever a Via Aérea Difícil, prepara o material necessário para uma Via Aérea Cirúrgica, que é o último recurso que separa seu paciente da morte. E não estou sendo dramático, acreditem. Outrossim, a Via Aérea Cirúrgica é a técnica de resgate do final de todos os algoritmos de Vias Aéreas da Emergência. Até aí tudo tranquilo, pode parecer: “Vou me jogar na Emergência e eventualmente vou ganhar experiência nesse procedimento”. Certo? Não é bem assim… Se você fizer tudo direitinho, vai ter poucas oportunidades de praticar. A Via Aérea Cirúrgica de Emergência está indicada principalmente nos casos de NINO – Não Intubo, Não Oxigeno – que é bem incomum. Vou mais longe e digo que se alguém se arvora de ter feito diversas vezes a cricotireoidotomia cirúrgica das duas, uma: ou essa pessoa tem realmente enorme experiência no manejo de Vias Aéreas(coisa de mais de 10 anos de plantões quase diários) ou… não sabe intubar! É que com uso da sequência rápida, mais de 99% dos pacientes são intubados nas primeiras tentativas mesmo nas mãos de intubadores pouco experientes.

Voltando ao artigo… que me interessou sobremaneira principalmente porque ajuda a dissipar dúvidas em torno da melhor técnica para garantir a VA cirúrgica. Olha só:

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A idéia do estudo era encontrar a melhor técnica para cricotireoidotomia de emergência para pessoas com pouca experiência em manejo de vias aéreas. Gostei desse conceito “Airway-Naive”, que poderia traduzir como o “inocente”, o “virgem” ou melhor ainda o “novinho da intubação”. Essa pesquisa só faz sentido assim, porque como dissemos anteriormente não se deve levar em consideração que seja normal ter experiência grande em VA Cirúrgica Emergencial(Não estamos falando de Traqueostomia, que fique bem claro). Para alcançar esse objetivo a pesquisa foi realizada com estudantes de Medicina. O desenho do estudo em poucas palavras: 20 estudantes de medicina foram randomizados – após assistir uma aula sobre o procedimento – para realizar seqüencialmente a cricotireoidotomia com uso de 3 técnicas diferentes, que – após uma pesquisa na literatura – se destacaram como as mais utilizadas. Foi estabelecido que o procedimento seria considerado bem sucedido se dentro de 3 minutos a cânula estivesse dentro da traquéia. Das três técnicas, duas utilizavam Kits de crico completos disponíveis no mercado, o primeiro é o da Melker, que usa a técnica de Seldinger(dilatação progressiva do local de punção):

O segundo Kit comercial é o QuickTrach II que é um monstrengo tipo um trocater que já vem com a cânula montada:

A terceira técnica do estudo era a técnica cirúrgica aberta. Uma variação daquele conhecido palpação-lâmina-palpação-lâmina-tubo. Vou descrever melhor depois. O material disponível era: bisturi, hook traqueal e cânula de Shiley. Sem mais delongas, eis a Tabela 1:

Diante do exposto, qual das três técnicas você imagina que se saiu melhor?   Claro que foi a técnica aberta. Dá uma olhada da Tabela 2:

Apesar da pouca significância estatística dos achados e tamanho da amostra, a única técnica que demonstrou 100% de sucesso foi a técnica aberta, além de ter sido realizada em tempo hábil de maneira uniforme também. Esse achados são interessantes, mas a parte mais importante do artigo está na Tabela 3:

 Os “novinhos” foram questionados antes e depois de usar as 3 técnicas quais delas eles consideravam mais fácil, mais rápida, mais segura e a melhor de uma maneira geral. Olha os dados do pós-teste. Com p< 0.001 a técnica aberta se torna a preferencial depois de se tentar as outras. E a mais importante mensagem está exatamente aí: não tenha medo do bisturi, mesmo que você seja novinho! A técnica é simples, não precisa de muito equipamento e se você tiver a oportunidade de treinar em cadáveres, pode se sentir seguro do sucesso na maioria dos casos. Descrevo uma opção de técnica aberta diferente da que está no artigo, esse método é o de minha preferência e utiliza poucas ferramentas, todas re-utilizáveis, que você deve ter prontas e separadas em um kit específico na sua emergência:

  • Bougie
  • Bisturi com lamina 11
  • Gancho traqueal
  • Dilatador de Trousseau
  1. Identifique os marcos anatômicos: a membrana cricotireóide localiza-se logo abaixo da cartilagem tireóide. Em homens a proeminência da tireóide é mais facilmente palpável. Basta deslizar o dedo pela linha média e sentir a membrana
  2. Se o tempo permitir realize a antissepsia do local e caso o paciente ainda esteja consciente anestesia localmente com lidocaína 2%
  3. Utilize a mão não-dominante para imobilizar a laringe. Esse passo é de fundamental importância! Use o polegar e o 3o quirodáctilo para essa imobilização, deixando seu indicador livre para localizar os marcos anatômicos novamente se necessário
  4. Com a mão dominante faça uma incisão vertical superficial na linha média de aproximadamente 2cm. Evite cortar os planos profundos nesse momento. Entre seu bisturi e a membrana há somente pele, tecido subcutâneo muito fino e a fáscia cervical anterior.
  5. Use o indicador da mão não-dominante para palpar novamente as estruturas, mas mantenha a laringe imobilizada! Sinta a anatomia rapidamente, estabelecendo os limites das cartilagem tireóidea, cricóide, bem como a membrana cricotireoidiana. O procedimento é prioritariamente táctil, se a sua visão das estruturas for obstruída por sangue, simplesmente ignore(o sangue) no momento.
  6. Finalmente faça uma incisão horizontal na membrana, de pelo menos 1cm. Você acabou de ganhar acesso à Via Aérea e como o nome sugere, tem ar lá dentro, que juntamente com o sangue que você ignorou anteriormente, costuma fazer uma combinação em forma de jatos. Não é hora de ter frescura: NÃO PERCA A VIA AÉREA! Coloca o dedo imediatamente na abertura!
  7. Se disponível, utilize o gancho traqueal para anteriorizar a laringe e garantir seu acesso. Um assistente deve manter o gancho tracionado delicadamente
  8. Use o dilatador de Trousseau ou uma pinça hemostática para ampliar a abertura feita com o bisturi com sua mão dominante
  9. Somente nesse momento você pode relaxar a imobilização da sua mão não dominante, que será utilizada para passar o TOT(geralmente de número 6, mas depende do tamanho do paciente) finalmente para a traqueia. Cuff insuflado, confira o posicionamento. Existe sempre o risco de falso-trajeto. Um Bougie pode ser utilizado para guiar o TOT. Isso pode ser útil para descartar falso-trajeto. Utilize a mesma técnica para aposição do Bougie, tentando sentir os “clicks” da passagem do Bougie pelos anéis traqueais ou o “stop” definitivo da impactação em Vias Aéreas de menor calibre.

Novinho ou antigão, tem que saber essa técnica simples e que pode ser ainda mais simplificada usando somente o bisturi e o tubo. Prefiro ter pelo menos esse material disponível e seguir esse passo-a-passo porque na hora em que eu precisar fazer isso em uma VA de um obeso mórbido, esses detalhes fazem a diferença.

Leia, re-leia, pratique. Quando estiver em uma situações real e prosseguir com essa medida salvadora, repasse o procedimento mentalmente antes de cortar a pele. Vai dar certo.