Quem tem medo do Bisturi?

Saiu um artigo na edição de junho de 2016 do Anesthesiology que me deu vontade de falar sobre via aérea cirúrgica. É um tema que eu particularmente gosto muito e dentre as frases mais importantes sobre o tema destaco uma do Scott Weingart:

“Se você não está disposto a realizar uma cricotireoidotomia, não deveria estar tentando intubar na Emergência.”

Pode parecer pesado, mas desde que ouvi essa frase em um de seus podcasts, venho refletindo sobre isso e não consigo discordar. Claro que o método de escolha pra manejo de Vias Aéreas na Emergência é sem dúvida a Intubação de Sequência Rápida. E uma das pouquíssimas contra-indicações(relativa) seria uma Via Aérea Difícil. Obviamente antes de bloquear o doente a gente tenta prever a Via Aérea Difícil, prepara o material necessário para uma Via Aérea Cirúrgica, que é o último recurso que separa seu paciente da morte. E não estou sendo dramático, acreditem. Outrossim, a Via Aérea Cirúrgica é a técnica de resgate do final de todos os algoritmos de Vias Aéreas da Emergência. Até aí tudo tranquilo, pode parecer: “Vou me jogar na Emergência e eventualmente vou ganhar experiência nesse procedimento”. Certo? Não é bem assim… Se você fizer tudo direitinho, vai ter poucas oportunidades de praticar. A Via Aérea Cirúrgica de Emergência está indicada principalmente nos casos de NINO – Não Intubo, Não Oxigeno – que é bem incomum. Vou mais longe e digo que se alguém se arvora de ter feito diversas vezes a cricotireoidotomia cirúrgica das duas, uma: ou essa pessoa tem realmente enorme experiência no manejo de Vias Aéreas(coisa de mais de 10 anos de plantões quase diários) ou… não sabe intubar! É que com uso da sequência rápida, mais de 99% dos pacientes são intubados nas primeiras tentativas mesmo nas mãos de intubadores pouco experientes.

Voltando ao artigo… que me interessou sobremaneira principalmente porque ajuda a dissipar dúvidas em torno da melhor técnica para garantir a VA cirúrgica. Olha só:

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A idéia do estudo era encontrar a melhor técnica para cricotireoidotomia de emergência para pessoas com pouca experiência em manejo de vias aéreas. Gostei desse conceito “Airway-Naive”, que poderia traduzir como o “inocente”, o “virgem” ou melhor ainda o “novinho da intubação”. Essa pesquisa só faz sentido assim, porque como dissemos anteriormente não se deve levar em consideração que seja normal ter experiência grande em VA Cirúrgica Emergencial(Não estamos falando de Traqueostomia, que fique bem claro). Para alcançar esse objetivo a pesquisa foi realizada com estudantes de Medicina. O desenho do estudo em poucas palavras: 20 estudantes de medicina foram randomizados – após assistir uma aula sobre o procedimento – para realizar seqüencialmente a cricotireoidotomia com uso de 3 técnicas diferentes, que – após uma pesquisa na literatura – se destacaram como as mais utilizadas. Foi estabelecido que o procedimento seria considerado bem sucedido se dentro de 3 minutos a cânula estivesse dentro da traquéia. Das três técnicas, duas utilizavam Kits de crico completos disponíveis no mercado, o primeiro é o da Melker, que usa a técnica de Seldinger(dilatação progressiva do local de punção):

O segundo Kit comercial é o QuickTrach II que é um monstrengo tipo um trocater que já vem com a cânula montada:

A terceira técnica do estudo era a técnica cirúrgica aberta. Uma variação daquele conhecido palpação-lâmina-palpação-lâmina-tubo. Vou descrever melhor depois. O material disponível era: bisturi, hook traqueal e cânula de Shiley. Sem mais delongas, eis a Tabela 1:

Diante do exposto, qual das três técnicas você imagina que se saiu melhor?   Claro que foi a técnica aberta. Dá uma olhada da Tabela 2:

Apesar da pouca significância estatística dos achados e tamanho da amostra, a única técnica que demonstrou 100% de sucesso foi a técnica aberta, além de ter sido realizada em tempo hábil de maneira uniforme também. Esse achados são interessantes, mas a parte mais importante do artigo está na Tabela 3:

 Os “novinhos” foram questionados antes e depois de usar as 3 técnicas quais delas eles consideravam mais fácil, mais rápida, mais segura e a melhor de uma maneira geral. Olha os dados do pós-teste. Com p< 0.001 a técnica aberta se torna a preferencial depois de se tentar as outras. E a mais importante mensagem está exatamente aí: não tenha medo do bisturi, mesmo que você seja novinho! A técnica é simples, não precisa de muito equipamento e se você tiver a oportunidade de treinar em cadáveres, pode se sentir seguro do sucesso na maioria dos casos. Descrevo uma opção de técnica aberta diferente da que está no artigo, esse método é o de minha preferência e utiliza poucas ferramentas, todas re-utilizáveis, que você deve ter prontas e separadas em um kit específico na sua emergência:

  • Bougie
  • Bisturi com lamina 11
  • Gancho traqueal
  • Dilatador de Trousseau
  1. Identifique os marcos anatômicos: a membrana cricotireóide localiza-se logo abaixo da cartilagem tireóide. Em homens a proeminência da tireóide é mais facilmente palpável. Basta deslizar o dedo pela linha média e sentir a membrana
  2. Se o tempo permitir realize a antissepsia do local e caso o paciente ainda esteja consciente anestesia localmente com lidocaína 2%
  3. Utilize a mão não-dominante para imobilizar a laringe. Esse passo é de fundamental importância! Use o polegar e o 3o quirodáctilo para essa imobilização, deixando seu indicador livre para localizar os marcos anatômicos novamente se necessário
  4. Com a mão dominante faça uma incisão vertical superficial na linha média de aproximadamente 2cm. Evite cortar os planos profundos nesse momento. Entre seu bisturi e a membrana há somente pele, tecido subcutâneo muito fino e a fáscia cervical anterior.
  5. Use o indicador da mão não-dominante para palpar novamente as estruturas, mas mantenha a laringe imobilizada! Sinta a anatomia rapidamente, estabelecendo os limites das cartilagem tireóidea, cricóide, bem como a membrana cricotireoidiana. O procedimento é prioritariamente táctil, se a sua visão das estruturas for obstruída por sangue, simplesmente ignore(o sangue) no momento.
  6. Finalmente faça uma incisão horizontal na membrana, de pelo menos 1cm. Você acabou de ganhar acesso à Via Aérea e como o nome sugere, tem ar lá dentro, que juntamente com o sangue que você ignorou anteriormente, costuma fazer uma combinação em forma de jatos. Não é hora de ter frescura: NÃO PERCA A VIA AÉREA! Coloca o dedo imediatamente na abertura!
  7. Se disponível, utilize o gancho traqueal para anteriorizar a laringe e garantir seu acesso. Um assistente deve manter o gancho tracionado delicadamente
  8. Use o dilatador de Trousseau ou uma pinça hemostática para ampliar a abertura feita com o bisturi com sua mão dominante
  9. Somente nesse momento você pode relaxar a imobilização da sua mão não dominante, que será utilizada para passar o TOT(geralmente de número 6, mas depende do tamanho do paciente) finalmente para a traqueia. Cuff insuflado, confira o posicionamento. Existe sempre o risco de falso-trajeto. Um Bougie pode ser utilizado para guiar o TOT. Isso pode ser útil para descartar falso-trajeto. Utilize a mesma técnica para aposição do Bougie, tentando sentir os “clicks” da passagem do Bougie pelos anéis traqueais ou o “stop” definitivo da impactação em Vias Aéreas de menor calibre.

Novinho ou antigão, tem que saber essa técnica simples e que pode ser ainda mais simplificada usando somente o bisturi e o tubo. Prefiro ter pelo menos esse material disponível e seguir esse passo-a-passo porque na hora em que eu precisar fazer isso em uma VA de um obeso mórbido, esses detalhes fazem a diferença.

Leia, re-leia, pratique. Quando estiver em uma situações real e prosseguir com essa medida salvadora, repasse o procedimento mentalmente antes de cortar a pele. Vai dar certo.